Por Reynaldo Aragon.
Antes de mais nada, é bom deixar algo claro: eu sou gamer. Sempre fui. Jogo desde criança, passo horas explorando mundos digitais, adoro narrativas imersivas e ainda me emociono com trilhas sonoras de jogos antigos. Este texto não é uma crítica aos jogos. Pelo contrário. É justamente porque amo os jogos que me preocupo com o que está acontecendo nos bastidores da indústria. A intenção aqui não é fazer sermão, mas acender um checkpoint de consciência crítica. Estamos jogando mais do que nunca, mas será que ainda somos nós que seguramos o controle? Ou já estamos sendo jogados por sistemas invisíveis que transformam cada clique, cada decisão, cada partida, em dados, lucro e condicionamento? Este artigo é um convite a olhar com atenção para o que está por trás da diversão. Porque amar os jogos também é querer que eles continuem sendo espaços de liberdade – e não de captura.
Pressione START para vender sua alma
Você liga o console. A tela inicial brilha. Em menos de três segundos, o jogo carrega. Seu personagem já está onde você parou. Tudo flui como mágica. Não é preciso pensar. Não é preciso esperar. Basta clicar. Jogar. Gastar. Recompensar-se. Compartilhar. E repetir. Tudo acontece com uma eficiência tão absoluta que você quase esquece que quem deveria estar no controle é você. Mas será que está?
O universo gamer se tornou um dos laboratórios mais avançados daquilo que os estudiosos chamam de ideologia da fricção zero. Em português bem claro: é a ideia de que qualquer obstáculo entre o desejo e sua realização deve ser eliminado. Isso parece ótimo, certo? Afinal, quem não quer uma jogatina fluida, sem lags, sem telas de loading, sem burocracia? Mas é aí que começa o jogo invisível, aquele que você não vê no HUD.

Controle de PS4. Foto: Reprodução/Pexels
A fricção zero é o grande fetiche das big techs do capitalismo digital. E no mundo dos games, esse fetiche ganhou textura pixelada e trilha épica. A promessa é sedutora: você clica e já está dentro. Compra sem digitar senha. Aceita os termos sem ler. Conecta seu cartão de crédito direto no menu de pause. Atualizações automáticas, saves na nuvem, sincronização instantânea com redes sociais, loot box entregue direto no seu inventário. A experiência é tão suave que você quase não percebe que está entregando dados, dinheiro, atenção e desejo no processo.
Essa fluidez toda não é neutra. Ela tem um propósito: capturar você. Mais precisamente, capturar seu tempo, seu foco, sua previsibilidade. A ideologia da fricção zero cria a ilusão de autonomia enquanto molda o seu comportamento para servir a lógicas algorítmicas de engajamento e monetização. Jogar vira uma rotina sem atrito, mas também sem escolha real.
Quando você pressiona START, o jogo começa. Mas talvez o jogador já tenha sido jogado.
O jogo sem atrito: a ideologia da fricção zero em ação.
Você lembra da época em que instalar um jogo levava horas, às vezes dias, entre CDs, atualizações manuais e drivers que nunca funcionavam de primeira? Pois é. Hoje, em poucos cliques, você já está dentro. Downloads automáticos, compras integradas, saves instantâneos e sincronizados na nuvem, matchmaking relâmpago, login com reconhecimento facial ou impressão digital. Tudo fluido. Tudo otimizado. Tudo pensado para que você não pense.
Esse é o coração da chamada ideologia da fricção zero. Ela se baseia na eliminação de qualquer obstáculo entre o desejo e sua realização. No universo gamer, isso significa um design de experiência que evita qualquer “momento de hesitação”. Se você abriu o jogo, ele precisa te prender. Se você gostou de algo na loja, precisa comprar sem digitar senha. Se você terminou uma partida, precisa entrar na próxima sem parar para respirar.
O botão de comprar skin já está no menu de pause. Os loot boxes abrem sozinhos. O aviso de “oferta por tempo limitado” pisca enquanto você navega. O jogo te recompensa só por logar. Você entra, gira a roleta, ganha moedas, sobe de nível e ainda é parabenizado com uma animação brilhante. Você nem jogou ainda, mas já foi premiado. Isso é fricção zero.
Por trás dessa suavidade toda, existe uma lógica: evitar qualquer momento de reflexão crítica. Pensar pode atrasar a compra. Questionar pode reduzir o engajamento. Duvidar pode te tirar do ecossistema da plataforma. Por isso tudo é rápido, simples, sem atrito. Mas essa ausência de atrito é também a ausência de escolha. Você não pausa, você não hesita, você apenas avança, paga, consome e compartilha.
O universo gamer virou o ambiente perfeito para essa lógica se expandir. E quanto mais natural ela parece, mais difícil é perceber que estamos dentro de um sistema que não só nos entretém, mas nos molda.
Jogador ou marionete? O império dos metaintermediários algorítmicos.
Toda vez que você entra na Steam e recebe uma recomendação “feita para você”, quando o YouTube sugere aquele streamer que você nem sabia que existia, ou quando o Discord te notifica sobre um servidor que “você pode gostar”, há um algoritmo ali — observando, medindo, sugerindo, conduzindo. Mas não se trata apenas de recomendação. O que temos hoje é um sistema de metaintermediação algorítmica, onde o jogador não interage diretamente com o jogo, mas com uma camada invisível de mediação que organiza o que ele vê, joga, sente e faz.
Esses metaintermediários não são personagens jogáveis. Eles estão fora da tela, mas dentro de cada decisão. São os algoritmos da loja digital que determinam quais jogos aparecem em destaque. São os sistemas de matchmaking que decidem com quem você joga. São as inteligências artificiais que moderam seus chats, priorizam suas notificações e até calculam o melhor momento para te oferecer uma nova skin com “desconto exclusivo”.
Não é teoria da conspiração. É arquitetura de plataforma. O algoritmo da Steam observa quantas horas você passou em jogos de estratégia e, com base nisso, te empurra promoções de outros títulos semelhantes. O sistema do Game Pass sugere o próximo jogo antes mesmo de você terminar o atual. O algoritmo da Twitch decide quais lives vão aparecer primeiro no seu feed. A PlayStation Store esconde títulos indie em páginas internas enquanto te empurra os AAA do momento com trailer automático e botão de pré-compra piscando.
E tudo isso acontece de forma quase imperceptível, naturalizada. Você acha que está escolhendo, mas está sendo conduzido. A interface é suave, o clique é fácil, mas a curadoria é invisível. Esses metaintermediários operam como diretores de palco: o jogador está em cena, mas o roteiro já foi escrito.
E quando você percebe que está jogando exatamente o que queriam que você jogasse, talvez já seja tarde. Ou talvez não — se você apertar pause e olhar para fora da tela.
O loop infinito: engajar, gastar, repetir.
Jogos sempre tiveram loops. É o que nos prende: o desafio, a recompensa, a vontade de tentar de novo. Mas o loop atual é outro. Ele não gira mais em torno da experiência, da diversão ou da descoberta. O que gira agora é a engrenagem do engajamento. O ciclo de monetização. A repetição infinita de estímulos que transformam o jogador num sujeito treinado para permanecer no jogo — não por prazer, mas por design.
Você entra para “só dar uma olhadinha” e, de repente, está completando desafios diários, desbloqueando recompensas semanais, subindo de ranking no evento sazonal e tentando aproveitar a promoção por tempo limitado da skin lendária que, claro, só fica disponível hoje. Tudo isso cronometrado, animado, otimizado. A fricção zero empurra, os metaintermediários organizam, e o loop fecha com um som de conquista e partículas brilhando na tela.
É assim com o passe de batalha que te obriga a jogar todo dia para “não perder o investimento”. Com o evento exclusivo que só libera conteúdo se você convidar amigos. Com o jogo gratuito que, no fundo, é um sistema de microtransações travestido de gameplay. Com o sistema de progressão que, misteriosamente, começa a te frustrar justo quando você considera gastar dinheiro.
A lógica do loop não é casual. Ela vem da psicologia comportamental aplicada ao design de games. Os jogos são construídos para criar ciclos de antecipação, frustração e recompensa que imitam os mecanismos de um cassino — só que com uma skin de anime. Você joga não para vencer, mas para continuar jogando. E continuar jogando significa continuar gastando. Ou, no mínimo, continuar oferecendo dados, atenção e presença, que valem tanto quanto dinheiro no modelo de negócios da economia da atenção.
No fim das contas, o jogo não quer que você se divirta. Ele quer que você retorne.
O glitch da resistência: quando o jogador hesita.
Às vezes, algo dá errado. A textura não carrega, o personagem atravessa a parede, a física enlouquece, o mundo digital quebra. O glitch é aquele momento em que o jogo mostra que é só um jogo. Que há uma falha no sistema. E talvez seja nesse instante que a resistência começa: quando a fluidez perfeita falha, e o jogador tem a chance de hesitar.
Resistir hoje não significa abandonar os jogos. Muito pelo contrário. Significa voltar a jogar com consciência crítica. Significa fazer perguntas incômodas: por que esse botão está aqui? Por que essa compra é tão fácil? Por que esse conteúdo sumiu da loja? Por que o jogo me recompensa apenas por voltar? E o mais importante: quem está controlando o jogo que eu achava que era meu?
A resistência pode estar em buscar experiências que escapem da lógica do loop monetizável. Jogos como Undertale, Papers, Please, Disco Elysium e Celeste mostram que é possível jogar contra a corrente. A resistência também vive nos mods, nos jogos indie feitos com suor e ironia, nas comunidades que trocam dicas para quebrar o algoritmo, nos memes que zombam da cultura do loot box, nos vídeos que explicam o que está por trás do botão “comprar”.
E, claro, resistir é também pausar. Hesitar. Refletir. Porque no mundo da fricção zero, pausar é quase um ato revolucionário. O glitch pode ser o momento em que você percebe que há algo fora do script. Que há espaço para criar, subverter, jogar diferente.
Amar os jogos é justamente não aceitar que eles sejam engolidos por sistemas que nos querem previsíveis, gastadores e sempre online. Jogar pode ser liberdade. Mas só se o controle estiver mesmo nas suas mãos.
